O Cifras.pt esteve, no passado dia 7 de Fevereiro, com o Paulo Furtado – mais conhecido como The Legendary Tigerman – antes da sua performance naquele que foi o primeiro concerto do ano do Sons à Sexta, na Moagem, no Fundão. Falámos sobre o seu início de carreira, aventuras das suas road trips, o seu último álbum “Misfit” e projectos futuros. Lê a entrevista em baixo!
Os blues e o rock n’ roll foram, no início, chamados de música do diabo. Os canhotos também tiveram essa associação, por parte da igreja católica. Sendo canhoto, achas que nasceste para tocar este tipo de música?
Paulo – [risos] Eu acho que, normalmente, quando há alguma coisa divertida e que mexe um bocadinho com a moral, as pessoas gostam de dizer que é obra do diabo. Eu, honestamente, acho que é mais obra humana. Além disso, o rock n’ roll e os blues não são só uma coisa, isto é, são várias coisas que estão associadas a uma característica humana muito forte – a dualidade entre o bem e o mal. O erro na minha música e a forma como eu lido com ele tem sido algo muito importante no modo como eu desenvolvo a minha linguagem musical.
Já disseste, em várias entrevistas, que sempre te sentiste um pouco desenquadrado do mundo. Se hoje em dia já é mais fácil ser desenquadrado, há uma ou duas décadas atrás, não era bem assim. Fala-nos da tua primeira tour por Portugal, como “One Man Band”.
P – Foi uma tour bastante difícil… Por várias vezes, eu disse que foi pelo último concerto, em Tondela, que a coisa não acabou. E foi um bocadinho neste formato, que se calhar não estava tão desenvolvido como está agora. Mas acho que, na altura, também foi um problema de parte a parte, porque se calhar o projecto ainda não estava amadurecido da maneira correcta e as pessoas também não estavam prontas para algo deste género. Além disso, há 20 anos, em Portugal, também não havia muitos sítios com condições técnicas boas e não havia muita gente a querer apostar em coisas mais alternativas
Mas então, no tal último concerto em Tondela, tudo mudou…
P – Esse, no café concerto, correu muito bem. Porque o que eu sentia é que as pessoas, até esse concerto, não só não estavam a compreender aquilo que eu estava a fazer, como também não estavam a querer compreender. Em Tondela, tudo isso mudou, já que senti que as pessoas sabiam o que estava a acontecer e conseguiram relacionar-se com isso. Foi o clique que chegou para apostar um bocadinho mais.
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Tu fizeste, ainda relativamente novo, uma tour pelos Estados Unidos da América, com os Tédio Boys. Foi uma aventura que deixou uma expectativa alta em relação à satisfação que conseguias tirar, enquanto músico, desde o início?
P – Deixa-me só clarificar uma coisa – chegámos à América, sendo que isso é um ponto alto, mas nas primeiras tours tanto tocavas para 5 pessoas numa espelunca, como no dia a seguir estavas a tocar no The Fillmore, em São Francisco. As tours, lá, mudam muito depressa, ou seja, quando os Tédio Boys acabam, as coisas estavam finalmente a poder ser viáveis. Agora, claro que havia já uma data de situações incríveis para 5 putos, mas o que eu acho que aquilo nos proporcionou foi uma visão mais correcta do mundo do rock n’ roll e do punk rock – um mundo que sempre admirei. Por exemplo, logo na primeira semana, em Nova York, cruzamo-nos com o Joey Ramone, que nos convida para a festa de anos dele, no final da tour. Em todas as cidades vias ídolos teus aparecerem, para ver concertos, do nada. Tinhas aquela ideia das rock stars, como os Ramones, quando, na realidade, eram pessoas perfeitamente normais, que estavam a tomar um café, no Village, quando ainda era fixe. Por outro lado, era músicos que tinham inventado uma boa parte da história do rock n’ roll americano, sendo que isso foi algo que nos tocou bastante. Portanto, o que é que isso me fez sentir? Por um lado, fez-me sentir que o acesso às pessoas e ao mundo não era assim tão complicado como um gajo, sentado numa mesa em Coimbra, pode ficar a pensar que é. Por outro lado, todas essas experiências e essa vida de estrada na América também me deu muita vontade de fazer rock n’ roll. Essa experiência deu-me uma noção muito real do que é a vida na estrada, do que é fazer uma tour pela América e de como é essa sensação de, de repente, estares a tocar no The Fillmore, para 2000 pessoas e no dia a seguir tens um banho de realidade e estás a tocar para 10. As coisas são sempre um bocado esquizofrénicas, o que é muito fixe, porque dá-te uma grande humildade e põe-te o foco no sitio certo, que é na música que fazes. Por exemplo, já como Legendary Tigerman, anos mais tarde, estava a tocar em Austin, num concerto que estava a correr muito mal – o técnico de som era muito mau e havia feedback por todo o lado, mas acreditei na cena e fiz o concerto até ao fim. Das 20 pessoas que estavam a ver, uma delas era o Jarvis Cocker, que me convidou para fazer uma tour, com ele, três meses depois. Estas coisas estão sempre a acontecer e tu percebes que, na realidade, tens sempre que dar o litro e tens sempre que fazer o concerto como se estivesses a tocar num estádio.
Falando agora do teu último álbum, “Misfit”. Sabemos que a experiência de gravar no Rancho de La Luna, na Califórnia, não começou da melhor maneira. Achas que se corresse tudo bem, desde o início, o disco também perderia um bocado aqueles caos inerente do rock n’ roll?
P – Honestamente, acho que o “Misfit” seria um disco completamente diferente, gravado na Europa. Apesar disso, não creio que a adversidade inicial tenha ajudado o disco, de todo, porque não foi uma cena fixe, isto é, foram só problemas técnicos num estúdio que não devia ter problemas técnicos. Assim que se resolveram esses problemas, o ambiente foi incrível. Mas o que mexeu mais comigo era a cena de estarmos ali, isolados, no meio do deserto, sem distracções. Onde não pensasses: “hoje há um grande concerto.” Não há nada… Tens lá no saloon, à quinta feira, o dia de microfone aberto onde, curiosamente, apareceram 5 ou 6 pessoas incríveis. Mas visto que as músicas também tinham sido escritas na estrada, com este peso do deserto presente, eu queria muito que o disco fosse gravado lá. Além disso, houve uma série de discos lá gravados que eu adoro, como o da a PJ Harvey, no “Desert Sessions”. Agora, é uma casa no meio do deserto, sem nada de especial. A mesa de mistura era na cozinha, os amplificadores estavam no quarto do Dave e a bateria estava numa sala, mas é uma casa onde as coisas soam bem e sentes uma vibração qualquer.
O “Misfit” foi criado a partir da perspectiva de uma personagem que tu encarnaste, no filme “How to Become Nothing”. Queríamos desafiar-te para um pequeno exercício de criatividade – há alguma personagem icónica do cinema que tu aches que, ao encarná-la, também daria um disco espectacular de rock n’ roll? Talvez o Robert Downey Jr, no Iron Man, ou o Brad Pitt, no Fight Club…
P – Sei lá, tantos… Há um filme, que eu gosto muito, que é baseado num livro do Hunter Thompson, chamado “Delírio em Las Vegas”. Acho que encarnar qualquer uma das personagens daria um bom disco. [risos]
Considerando todas as road trips que já fizeste pela América, há alguma pessoa que tenhas conhecido, do nada, e que te salta à memória, talvez pela personalidade extravagante, quase tirada de um filme do Tarantino?
P – Sim, por acaso, quando estávamos a gravar o “Misfit”, em Joshua Tree, houve uma senhora índia que me parou numa espécie de loja de bebidas e tabaco. Começou com um discurso muito fora, que me tinha parado porque estava a sentir a minha aura [risos]. Com ar super estranho, disse-me que eu estava ali a fazer coisas bonitas e interessantes e que não me preocupasse que ia correr tudo bem. Depois, foi-se embora.
E isso marcou-te?
P – Sim. Opá, a América é incrível por causa disso. Especialmente esta América de beira da estrada, de tu pegares num carro, poderes ir a qualquer lado e de repente cruzares-te com uma série de personagens, em sítios muito estranhos. Chegas de dia a um motel e parece um sitio normal e, à noite, é só gajos a vender droga, com armas, p*tas e uma confusão do c*ralho e tu pensas “f*da-se, o que é que se passa aqui?” [risos]. Depois, também há aquela ideia que eu acho muito fixe, de uma estrada que nunca acaba, onde podes andar, andar e continuares a andar até chegares a sítios onde tu nunca foste.
Agora estás com a “One Man Band Tour” em estrada, mas fala-nos de projectos futuros.
Agora estão algumas coisas ainda a funcionar, em paralelo. Também estou com uns espectáculos, com a Maria de Medeiros, numa coisa muito engraçada que ela me desafiou, o ano passado, e no qual já fizemos alguns concertos, em Portugal e Espanha. Vamos fazer mais uns, em Maio e Junho, cá e no estrangeiro. É um projecto baseado em música para cinema, que se chama “24 Mila Baci” e que são reinterpretações de músicas do Nino Rota, do “Padrinho”, do Tom Waits, da Marlene Dietrich e de uma série de outros universos, desse género. Depois, a minha ideia para a “One Mand Band Tour” era fazer só esta tour, mas estou a perceber que há alguma vontade de ter isto em mais alguns sítios. Portanto, aqui em Portugal, talvez faça até ao Verão e depois, eventualmente, ainda faça uma tour internacional, em Setembro e Outubro. A seguir disso, mais para o final do ano e inicio do próximo, é altura de disco novo, que já estou a gravar e que é completamente diferente de tudo o que tenha feito até hoje.
O que é que nos podes dizer sobre esse disco novo?
No fundo, é uma vontade que eu tive de fazer música a partir de um pressuposto – fazer rock n’ roll, sem guitarras. O modo como eu faço blues e rock n’ roll, em Tigerman, é muito peculiar e, por isso, quis pegar bocadinho nessa coisa inicial, que tinha muito a ver com este formato da one man band. Como é que eu vou conseguir tocar baixo, guitarra, bombo e tarola? Como é que o silêncio se vai relacionar com o barulho? Agora, a pergunta é: “como é que seria fazer rock n’ roll, se não tivesse uma guitarra?” A minha ideia foi então trabalhar com sintetizadores modulares.
João Ribeiro
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